Contentamento em um Mundo Descontente

Contentamento em um Mundo Descontente

Para o cristão, o contentamento é uma joia mais preciosa do que esse diamante vermelho extremamente valioso. Em 1642, o pastor puritano Jeremiah Burroughs pregou uma série de sermões sobre o contentamento cristão que foram reunidos e publicados em 1648, dois anos após sua morte. O título que os editores escolheram foi The Rare Jewel of Christian Contentment ( A Joia Rara do Contentamento Cristão). Ela leva o leitor a um poderoso desdobramento deste tema vital, começando com a afirmação do apóstolo Paulo em Filipenses 4.12, “Aprendi o segredo de viver contente em toda e qualquer situação” (NVI). Infelizmente, muitos cristãos no século XXI nunca se aprofundaram no tema do contentamento. Como a rocha lamacenta escavada na margem de um rio brasileiro, seu verdadeiro valor tem sido escondido de muitos olhos por séculos. Desejo que um número cada vez maior de cristãos experimente o tipo de contentamento que Paulo descobriu e o qual Burroughs tão habilmente descreveu. Seu valor na eternidade provará ser muito maior do que o do diamante vermelho. Por que eu digo isso? Considere o seguinte cenário hipotético: imagine que você acabou de ganhar o prêmio de sorteio mais extraordinário de todos os tempos, mas ele veio por meios sobrenaturais. Vamos chamá-lo de “Agência de Viagens Faustiana”, de propriedade e operada por um certo Sr. Mefistófeles.

O prêmio é uma viagem de duas semanas com todas as despesas pagas em qualquer parte do mundo. Você ficará nos hotéis cinco estrelas mais caros, comerá a comida da melhor qualidade, feita pelos melhores chefs do mundo. Você verá o cenário mais espetacular, dirigirá os carros mais caros e usará um vestuário totalmente novo, feito sob medida para você. A viagem terá o melhor de tudo e atenderá a todos os seus caprichos.

Mas aqui está a pegadinha: você teria que concordar em estar continuamente descontente em cada momento da viagem. Você faria isso? Duas semanas de descontentamento constante no cenário mais luxuoso possível? Para muitas pessoas, eu acho que a resposta pode ser bem clara: “De jeito nenhum! Por que eu iria querer ficar infeliz por duas semanas seguidas?” Na verdade, vemos muitas das pessoas mais elitizadas do mundo vivendo essencialmente esse tipo de tragédia na vida real. Atletas e famosas estrelas de cinema vivendo em mansões espetaculares em suas propriedades privadas em costas rochosas, com projetos arquitetônicos que maximizam a vista do nascer do sol ou do pôr-do-sol sobre o oceano. Apesar disso, vivem tragicamente descontentes, indo de divórcio em divórcio, viciados em drogas, entediados, até suicidas.

Inversamente, suponha que uma oferta diferente tenha sido feita a você, pelo seu Pai celestial. Ele está oferecendo uma dolorosa provação de sofrimento. Você será espancado publicamente, preso em um calabouço sombrio com seus pés em troncos. Você será privado de comida, água, cuidados médicos e até mesmo de luz. À sua volta estarão outros prisioneiros sofredores, o mau cheiro dos fluidos corporais humanos, e o tipo de desespero que vem quando o fim de sua agonia não está à vista. Mas você também será preenchido com um contentamento tão sobrenatural por meio da presença de Deus que mais tarde você se lembrará daquela época como um dos momentos mais doces de sua vida. E você terá o privilégio de levar uma família inteira a Cristo (ver At 16.16-34). Qual oferta você aceitaria? Se você é cristão, é possível que você escolha a segunda experiência, apesar do alto custo que a acompanha. E se assim for, você provavelmente já concorda que o contentamento é o maior estado de bem-estar interior que alguém poderia ter nesse mundo.

O valor do contentamento é superior a qualquer outro que o diamante vermelho possa trazer. No entanto, apesar do valor desse rico, pleno e contínuo contentamento, e apesar do fato de ser possível que todos os cristãos do mundo o experimentem, essa joia requintada é rara em nossas vidas. E como o mundo não salvo precisa desesperadamente dos cristãos para descobri-la.

Nesse mundo trágico, estamos rodeados de pessoas descontentes. A cada minuto do dia, é possível ver evidências desse descontentamento inquieto na forma como elas reagem às circunstâncias. Mostram seu descontentamento enquanto dirigem, porque o trânsito é muito lento. Ou talvez o tempo esteja muito quente, muito chuvoso ou muito úmido. Ou em seus empregos as pessoas não es-tão sendo bem remuneradas ou recebendo crédito suficiente pelo trabalho árduo que realizam. Ou porque não suportam seus colegas de trabalho. As pessoas se sentem profundamente desapontadas com seus casamentos ou com a forma como seus filhos têm se saído. Seus corpos são muito gordos ou não são bonitos o suficiente. Atrapalhadas pelo descontentamento, as pessoas, muitas vezes, compram coisas das quais não precisam a fim de melhorarem suas perspectivas de vida. Muitos tentam encontrar seu caminho para a felicidade buscando em conselheiros a cura para suas infâncias disfuncionais. O descontentamento com o amor que não encontraram aparece nos seus olhos cobiçosos e errantes nas festas do escritório. Suas perspectivas escurecem quando essas pessoas pegam o trem metropolitano para mais um dia nos mesmos empregos que as tem aprisionado durante anos.

O descontentamento inquieto do mundo dos não cristãos não surpreenderá muitos crentes que procuraram ganhá-los para Cristo. Percebemos que a Escritura revela a verdadeira condição espiritual dos perdidos: eles estão “sem esperança e sem Deus no mundo” (Ef 2.12; NVI). As pessoas perdidas são “aflitas e desamparadas, como ovelhas sem pastor” (Mt 9.36; NVI). A escravidão delas aos poderes invisíveis das trevas (Ef 2.1-3) significa que compartilham com Satanás e com os demônios a mesma inquietação que as fazem vaguear pela terra, procurando constantemente algum tipo de descanso, mas sem encontrar nenhum (Jó 1.7; Mt 12.43). A condição espiritual dos perdidos e a escravidão ao pecado garante que eles nunca poderão encontrar o verdadeiro descanso e a verdadeira paz, essenciais para o genuíno contentamento. Isaías o disse claramente: “Mas os perversos são como o mar agitado, que não se pode aquietar, cujas águas lançam de si lama e lodo. Para os perversos, diz o meu Deus, não há paz” (57.20-21).

Esse descontentamento agitado dos incrédulos explica muitos dos terríveis eventos que acontecem no planeta Terra. Governantes poderosos, descontentes com o tamanho de seus domínios, saem em conquistas gananciosas, deixando um rastro sangrento de morte e destruição ao longo das páginas da história. Todo crime que rasga a trama da sociedade vem de pessoas descontentes, viciadas em drogas, álcool, dinheiro, poder ou prazer sensual e que estão dispostas a destruir a vida de outras pessoas para conseguir o que suas almas inquietas exigem. Todo casamento que termina em divórcio começa essa trágica jornada em um coração descontente. Embora não possamos dizer que cada miséria nesse mundo comece com o descontentamento humano, podemos afirmar com segurança que todo o sofrimento do mundo é exponencialmente intensificado pelo fracasso em encontrar um genuíno contentamento em meio a toda e qualquer circunstância.

Como cristãos, não devemos nos surpreender com nenhum desses diagnósticos do mundo incrédulo. Mas a grande tragédia é que muitas vezes não parecemos viver de maneira muito diferente. Muitos cristãos quase nunca experimentam o gosto diário do céu provido pelo Espírito Santo que vive dentro de nós (Ef 1.13). Muitos demonstram altos níveis de descontentamento em todas as mesmas circunstâncias que acabo de listar, e em inúmeras outras. Muitos de nós estamos inquietos, buscando algo de valor em nossa vida, mas sem encontrar. Muitos são espiritualmente imaturos, incapazes de lidar até mesmo com as menores aflições e inconveniências sem verbalizar nossas queixas a quem quer que as escute. Muitos cristãos vivem tão descontentes que nunca são solicitados por nenhum dos descrentes igualmente descontentes que os cercam pois, não conseguem apresentar uma razão para a esperança que eles têm (1Pe 3.15), porque evidentemente eles não têm nenhuma esperança. O que torna isso ainda mais surpreendente é que, por mais de dois séculos e meio, os desenvolvimentos na ciência, na indústria, na economia e na medicina têm reduzido de forma constante e sistemática as misérias físicas comuns a todas as gerações precedentes da humanidade.

A Revolução Industrial trouxe um progresso tecnológico surpreendente ao mundo, resultando em dispositivos que economizam mão de obra, novas fontes de energia, avanços surpreendentes nos transportes, encanamentos internos e casas com fiação para eletricidade. Aquecimento e ar-condicionado regulam a temperatura que nos cerca em quase todos os momentos. Os refrigeradores nos permitem manter os itens perecíveis mais frescos por mais tempo, os e sistemas de entrega das terras agrícolas para nossas casas garantem que um fluxo constante de alimentos deliciosos e acessíveis manterá nossas famílias comendo como a realeza. Os pesquisadores médicos nunca param de procurar remédios para doenças e enfermidades que tornam a vida tão miserável. E temos uma clara expectativa de que alguém, em algum lugar, está aplicando a genialidade tecnológica para remover da vida diária toda e qualquer aflição dolorosa. Dizemos: “Se fomos capazes de colocar um homem na lua, certamente poderemos curar a gripe comum”. A revolução digital tem sido um milagre da ciência moderna e nossos smartphones impressionantemente pequenos trazem o mundo inteiro às nossas mãos instantaneamente.

No entanto, apesar de todos esses avanços, estamos mais descontentes do que nunca. Gregg Easterbrook escreveu um livro exatamente sobre esse tema intitulado The Progress Paradox: How Life Gets Better While People Feel Worse (O paradoxo do progresso: Como a vida melhora enquanto as pessoas se sentem pior). Nos países do Primeiro Mundo, ele argumenta que, apesar dos avanços que acabou de catalogar, tenham melhorado materialmente o nível de conforto físico de todos nessas sociedades, os índices de depressão e psicose continuam a aumentar. As pessoas veem que suas vidas não têm sentido e parecem não conseguir encontrar nenhum remédio para combater a praga de seu próprio descontentamento consistente. Um exemplo claro é o transporte de longas distâncias. Nunca foi tão fácil, e mesmo assim ainda reclamamos! Lembro-me de ter estado recentemente em um terminal de aeroporto novinho em folha, lendo um registro histórico dos Peregrinos no Mayflower atravessando o Atlântico Norte em condições perigosas, em novembro de 1620.

Essas pessoas intrépidas viveram por muitas semanas na área escura e lotada abaixo do convés, comendo biscoitos frios e suportando o fedor do vômito causado pelo movimento do pequeno navio incessantemente agitado. Uma mulher até deu à luz nesse ambiente. Enquanto eu lia esse livro, ouvi um homem de negócios, bem vestido, falando ao celular com imenso aborrecimento: “Sim, foi um pesadelo total! Estávamos sentados na pista por mais de uma hora antes de finalmente decolarmos! Agora eu provavelmente vou perder meu voo de conexão!” A voz dele se afastou enquanto passava por mim, e ri comigo mesmo da perspectiva dele. Ele certamente não estava pensando como somos abençoados por sermos capazes de cobrir milhares de quilômetros por via aérea no espantoso conforto de um jato moderno. Não precisamos embarcar em um minúsculo veleiro de madeira e atravessar um oceano aterrorizante. Também não temos que carregar um vagão Conestoga (transporte utilizado no final do século 18) com semanas de provisões e cruzar rios agitados em uma perigosa viagem até o Território do Oregon.

Outro fator que gera descontmento é que estamos mais conscientes do que nunca acerca da miséria geral da raça humana. Nossos smartphones nos ligam a aplicativos de notícias que nos mantêm atualizados sobre as principais ocorrências ao redor do mundo, derramando um fluxo constante de sofrimento em nossa consciência. Estamos imediatamente cientes de um devastador terremoto no Oceano Índico e do subsequente tsunami que extermina comunidades inteiras e mata milhares de pessoas. Ou ouvimos falar de mais um ataque terrorista em Londres, ou em Paris, ou em Madri que resultou na morte ou na mutilação de dezenas de pessoas. Além disso, lemos sobre um vírus para o qual não há cura, originado na África Ocidental e que ameaça se espalhar por transportadores humanos por meio de viagens aéreas para locais metropolitanos no mundo todo. Vivemos num mundo de miséria no qual pouquíssimos encontram contentamento duradouro.

É nesse cenário pulsante e em ebulição de infelicidade inquietante que desejo redescobrir a joia rara do contentamento cristão – primeiro, a partir das Escrituras e depois de Burroughs – e fazer brilhar sua antiga luz de forma radiante para o leitor do século XXI. O contentamento tem o poder de trazer paz sobrenatural e eterna fecundidade em toda e qualquer circunstância que enfrentaremos e é, portanto, muito mais valioso do que o deslumbrante diamante vermelho de Moussaieff. Minha tese para esse livro é que o contentamento cristão é encontrar deleite no sábio plano de Deus para minha vida e humildemente permitir que ele me dirija nesse processo. Meu objetivo é que mostremos mais consistentemente o contentamento cristão de forma que, no final, Deus será glorificado em nossas vidas diárias, seremos mais alegres, e nos tornaremos fontes de inspiração para aqueles que nos observam busquem o Salvador, o único por meio de quem eles podem ter esse mesmo contentamento sobrenatural.

Texto extraída do livro “Poder do Contentamento Cristão”

Em 1643, o pastor puritano Jeremiah Burroughs escreveu um livro intitulado The Rare Jewel of Christian Contentment (A Joia Rara do Contentamento Cristão) que tem tanta reverberação nos nossos dias marcados pelo descontentamento como teve nos dias do autor. Agora, o pastor e escritor Andrew M. Davis nos ajuda a redescobrir as verdades profundamente marcantes encontradas naquela obra tão esquecida de Burroughs. Com novas e poderosas ilustrações e um apurado senso de tudo que perturba os cristãos modernos, Davis nos desafia a confrontarmos as fontes do descontentamento em nossas vidas abraçando o ensino do apóstolo Paulo sobre o contentamento em todas as circunstâncias.